segunda-feira, 12 de outubro de 2020

A 4ª ferida narcísica da humanidade: o polvo

[SEM SPOILERS] A filosofia e a psicanálise nos ensinam que a humanidade sofreu três grandes feridas narcísicas coletivas, questionando nossa arrogância e nos deixando a deriva em um universo do qual não captamos a grandeza e o sentido. Não por acaso, cada uma dessas feridas trouxe resistências implicações também na ciência e religião.



  1. Copérnico e Galileu demonstraram que a Terra não era o centro de “tudo”. Nem mesmo do sistema solar. Mas pelo menos ainda seríamos a criação favorita de Deus, há 5000 anos.
  2. Daí vem Darwin e demonstra que nós e os macacos evoluímos de um antepassado em comum, que todos seres vivos tem a mesma origem ancestral. Confirmado depois pela genética. Mas pelo menos temos a razão lógica consciente, que daria conta de tudo. Até Darwin nos trazia, como consolo, a supremacia da nossa razão.
  3. Então Freud “descobre” o inconsciente e demonstra que não sabemos nada de nós mesmos, nem porque fazemos a maioria das coisas. O nosso tão cultuado EGO não passaria de uma espécie de “porteiro” que pensava ser o dono - ou deus - do “prédio” mental em que mora, só porque viu quem entra e quem sai.

Nossa consciência não se posta. Não sabe de onde veio ou para onde vai. Se somos finitos, parece haver um infinito antes e depois. Se somos limitados e mortais, presume-se um ilimitado além. Abrimos o olho e o universo já “está”, não sabemos como. Será real ou sensorial? Somos nós que o criamos, ou ele que nós cria? Porque há um antes e um depois em que minha “inteligência” não estaria “aqui”? Ganhamos uma inteligência e percepção (não sabemos de onde) e não controlamos o processo infinito que nos transcende e nos colocou “aqui” e “agora” - se é que podemos falar em aqui-agora como realidade extra-sensorial. 


Mas nem sempre foi assim: todos nós nascemos acreditando que o mundo é que gira à nossa volta, e que o Criador de tudo é um grande Pai humanoide talhado à nossa imagem e semelhança - ou vice-versa. Cada ferida narcísica tira nosso chão, questiona nossa realidade e lugar. Esperávamos que a descoberta de vida inteligente fora da Terra fosse a 4ª grande ferida narcísica da humanidade. Como seriam os deuses, filosofias e valores de outras “criaturas” do universo e/ou de Deus?


Bem, me parece que os ET’s terão que se contentar com o 5º lugar. Esse documentário “Meu Professor Polvo”, disponivel no Netflix, tem força para abrir nossa 4ª grande ferida narcísica enquanto humanidade. Somos mesmo tão inteligentes e sensíveis assim como pensávamos? Se sim, por quanto tempo? Com esse grau de adaptação e resolução de problemas, será que um polvo levaria 12.000 anos para superar o predador que somos nós? Pois me parece que eles já se encontram em estágios de consciência que temos documentados em nosso passado.


Duas falas do documentário me marcaram, não por serem frases, mas por serem demonstradas e sentidas por quem compreendeu o que viu:


1. Um sub-ecossistema (a floresta marinha local) agindo claramente como um Ser, uma inteligência maior, centenas de vezes maior que a nossa, e ainda assim não necessariamente sobrenatural. Provavelmente parte de outro Ser maior ainda. Lembro na hora de Gaia, Avatar, Yemanjá e outros mitos de transcendente no imanente, de inteligência em um “deva” ou “elemental”.


2. Pensamos ser “visitantes” do oceano, “estudiosos” das espécies. Mas fica claro que somos “parte” de um processo maior e muito mais inteligente (no sentido natural e para-humano mesmo) que nos ordena e que não compreendemos bem. Somos oceano. Essa pequena mudança, de “visitante” para “parte” de Gaia é um grande plot-twist, rouba nosso chão e certezas, questiona nossa ciência e mitos. 


Assista, mas fica o alerta: não dá para “des-ver”.




PS: Me lembro das “piada” que fazíamos do polvo Paul, aquele que acertava resultados sucessivos da Copa do Mundo, além de quaisquer probabilidades sensatas. Se aquilo era autêntico, fico me perguntando que outros tipos de sensibilidades, percepções do tempo-espaço e “telepatias” esses animais indivíduos-não-humanos poderiam ter. Melhor não pensar muito nisso: só absorvo uma ferida no ego por vez. Em todo caso, comer polvo deveria ser crime hediondo para um especista, mais grave do que alguém comer pinguim ou cão. Além do homem ser um predador extra desnecessário para eles, prefiro ser amigo: com a inteligência rápida que eles tem, adaptando-se inclusive fora da água, criando ferramentas (!), aprendendo a andar e a enganar, talvez no futuro (próximo) essa excentricidade “gastronômica” seja um tiro no nosso próprio “pé”. E observe que só temos dois.