terça-feira, 7 de junho de 2011

A frase de Zé Ramalho "A sombra que me move, também me ilumina" seria um toque espiritual dele, na sua opinião? Pode a sombra iluminar? Obrigado.

Por mais que haja devaneios tolos a me torturar, não tenho suficientes conhecimentos poético-canabióides-existenciais para analisar os desdobramentos filosóficos de versos como "oh meu velho e indivisível avohai" ou "Veneno lamparina é prata que vai pingar na prata do camelô, cometa que cai no mar, debaixo de sete quedas". A tentativa de entender este poeta paraíbano gera em meu cérebro coágulos de sol, a não ser que eu fume da mesma neblina turva e brilhante. Mas não tanto a ponto de me dar medo de viajar até o meio da cabeça do cometa girando na carrapeta no jogo de improvisar", porque bad trip e peia não são minha onda, definitivamente, hehehe.

Falando mais sério um pouco, ainda que nosso poeta não seja lá exatamente um literato junguiano, o inconsciente pode falar sim através de seus versos, espontaneamente, de modo a que ele tenha a palavra certa pra doutor junguiano não reclamar. A sombra psíquica é do inconsciente coletivo e pessoal humano, e não do Jung. Obras como O Médico e o Monstro já a contemplavam bem antes do estabelecimento do conceito teórico. O diabo cristão, criação medieval, também já personificava a sombra coletiva de uma europa judaico-cristã do medievo - e posteriormente os resíduos do mito do iluminismo - bem antes de alguém inventar a palavra "psicologia". Para não falar do culto a Dionísio e os Mistérios de Elêusis da antiga grécia.

Se formos nos atentar à minha interpretação do conceito junguiano, me parece que a sombra - em si e por si - não ilumina, como sugere o jogo de palavras viajandão de "Galope Rasante" (http://letras.terra.com.br/ze-ramalho/122525/). A sombra é formada por conteúdos que foram rejeitados pelo eu consciente, se aproximando bastante do conceito mais patológico de "inconsciente" de Freud - com a diferença de que, ao contrário do inconsciente-freudiano, a sombra-junguiana não é necessariamente apenas "ruim", "enganadora", mas também abriga potenciais criativos, potenciais espirituais, intuição, enfim, tudo de bom ou de ruim que o ego consciente rejeitou, direta ou indiretamente. Poderíamos dizer que a visão de Freud era mais iluminista, logo o que não estava na consciência adquiria um caráter negativo, um inimigo enganador; e já em Jung, como em Nietzsche (o espírito da tragédia, dionisíaco X apolíneo), a consciência não é mais vista como a oitava maravilha da humanidade. Em palavras mais simples, somos apenas PARTES do que poderíamos ser, e boa parte deste trabalho de recuperação é um trabalho de sombra. Ou seja, como Zé da Paraíba talvez perceba intuitivamente, há coisas muito boas vindo de sua sombra psíquica. Isto é mais verdade ainda em quem lida com processos criativos pouco convencionais, como parece ser o caso dele.

Embora não seja a sombra que ilumine, não dá para falar em iluminação de fato sem considerá-la. Não como FONTE de luz, como objeto de culto, mas como objeto que não pode deixar de ser iluminado no processo de autoconhecimento e individuação. NInguém se torna iluminado voando feito louco com asas de cera em direção ao sol, mas sim levando luz às partes mais obscuras da sua psique. Neste sentido, cabe alertar para o risco de "culto à sombra" que muitas vezes ocultistas e drogadictos equivocados incorrem, tão perigoso quanto o culto exagerado ao luminoso com o qual pretensos "espiritualizados" tendem a fugir do mundo ou de si mesmos. - Jung diz em "Aion" que a sombra é um problema de ordem moral, e que seu culto pode abrir caminho para perigosos processos de possessão psíquica.

Portanto, alto lá com esta história romântica de a sombra iluminar, tornar-se uma espécie de substituto heavy-metal do self. Por outro lado, o, err, digamos, "poeta" (sic) acerta - ou pelo menos bate na trave - ao observar que há ótimos conteúdos na sombra, que aquilo que a sociedade condena no sombrio pode ser fonte - ou pelo menos copartícipe - do processo de tentarmos nos tornar aquilo que podemos ser.

Jung tem um sonho em que atravessa uma caverna escura carregando uma pequena vela na mão, e fugindo de SOMBRAS assustadoras que são projetadas atrás de si. Ele não vê muito à frente, mas a pequena e frágil luz - seu ego - lhe permite percorrer os próximos passos do caminho. Dados esses passos, então a mesma luz poderá lhe iluminar os passos seguintes, através da escuridão da jornada na caverna enfrentando suas PRÓPRIAS sombras.

O bonito na analogia deste sonho é que demonstra que o conteúdo sombrio é PROJETADO pela própria luz da consciência. Não existiria sem ela, é verdade. Diz Freud em Tótem e Tabu que a civilização, ao criar o superego (da psicanálise), cria também o ego (decidindo entre desejos e repressões) - e, é claro, o conflito e a neurose. Mas sem regras e superego não há civilização possível... Logo, não há civilização sem ego, não há como não sermos neuróticos, de algum modo. Que bom que somos! Mas há um caminho possível para conviver com isso, Entendo que o sonho de Jung traga uma resposta para esse dilema. Não haveria sombra (inconsciente freudiano) sem a luzinha da consciência (ego, numa comparação freudiana), é ele que a projeta, a partir de NOSSA PRÓPRIA CONSTITUIÇÃO. Entretanto, apagar a luz não me parece uma boa opção. Logo, se podemos dizer que a sombra se opôe ao ego separando, na neurose, conteúdos que se integrados levariam ao self, podemos dizer também que, se pudéssemos olhar a partir do ponto de vista do divino, de algum modo, O EGO É A SOMBRA DO SELF (!!!!). Mas sem o ego não é possível atravessar a caverna.

Jung observa que sua pequena e frágil luz, que pode se apagar a qualquer momento, é sua única auxiliar nesta travessia, e que precisa protegê-la (é bom não nos esquecermos que Jung psicotizou em certa fase da vida, logo, é também o sonho de um psicótico inteligente e intuitivo-introvertido, destacando a necessidade de proteção de seu ego). Curioso como uma pequena luz que só permite visualizar poucos passos adiante (a exemplo do que ocorre com nossa vida) é, ao mesmo tempo, tudo o que necessitamos para percorremos quilômetros, sem precisarmos temer a sombra - especialmente ao compreendermos que ela é formada por nós mesmos, e que diminui à medida em que consigamos, de algum modo, levar luz aos cantos mais escuros, onde não raro encontramos pepitas de ouro, pedras preciosas e fontes subterrâneas cristalinas.

Dito isso, posso voltar ao Avôhai. Não, não é a sombra que ilumina, mas é preciso conhecê-la (e não negá-la) para que nos tornemos mais conscientes de nós mesmos. E quando fazemos isso, ao invés de encontrarmos (apenas) neuroses, vampiros e pesadelos, encontrarmos os nossos mais valiosos tesouros e pontenciais, soterrados que foram também no abismo que somos nós.

"Quem não enfrenta o inferno de suas paixões, tampouco as supera. Qualquer árvore que queira tocar os céus precisa ter raízes tão profundas a ponto de tocar os infernos" (Carl Gustav Jung)

Fala que eu te escuto... Pergunte-me qualquer coisa:

2 comentários:

  1. Fiz esta pergunta ao Lázaro há mais de 10 anos atrás e há a li inúmeras vezes! Já compartilhei com meus amigos. E sempre que a leio novamente, aprendo algo novo. Muito grato, Lázaro. Acompanho seu trabalho desde a Voadores! Axé!

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  2. É noite que vai chegar: nigredo
    Na prata do camelô: albedo
    É ouro que vai pingar: rubedo

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