quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Água mata. Café e ovo também.

Água mata: A epistemologia pode-não-pode do ovo e do café

Gosto por café amargo sugere psicopatia, afirma "pesquisa".
Se chegou a este blog, comece a correr.

Uma pesquisa recém divulgada "concluiu" que (1) "gostar de café sem açúcar e bebidas amargas sugere psicopatia". Entretanto outros estudos garantem que (2)  grande parte da população tem traços de psicopatia - sem precisar estudar as bebidas que tomam. E quase todos autores das ciências humanas reafirmam que (3) vivemos tempos líquidos, imediatistas, narcisistas, hedonistas e sociopatas.

Embora o primeiro estudo adote um método científico "focado", desconsidera o [mundo-real-onde-as-pessoas-vivem] contexto transdisciplinar. Por isso afirma uma falácia non sequitur, como se dissesse que "água mata, pois todos os mortos já tomaram água". Já é minha favorita para próximo Prêmio Ignóbil. O café amargo do psicopata me lembra o sofá de sala do Manuel, aquele desafortunado marido finlandês.

Novas pesquisas no Google indicam que
novas pesquisas na Superinteressante
talvez não sejam tão bem
pesquisadas assim
E agora, em mais uma dessas pesquisas "não-pode-mas-pode", as mesmas publicações semi-interessantes "divulgam" que "café cura uma série de doenças"Pode até ser. Mas como cada pesquisa do tipo, em seu esforço de ser [bombástica] publicada sempre convenientemente desconsidera (1) a transdisciplinaridade, (2) as pesquisas anteriores, (3) a relevância, (4) as falácias conclusivas e (5) o contexto global do objeto pesquisado; imagino o dia em que lerei na uma "pesquisa na Inglaterra" (são sempre eles) dizendo que:

"Pesquisas comprovam que água mata. Estudos sugerem que todos que já morreram tomaram água. Para comprovar a teoria, alguns [jovens pós-graduandos criativos e sem noção] cientistas ingleses investigaram o histórico de 1000 doentes terminais em diferentes hospitais do mundo, e concluíram que o único alimento em comum entre todos eles era a água. Mais cedo ou mais tarde, 100% deles vieram a óbito. Os pacientes, não os cientistas."

Say my name? Heisenberg!
Say my name!
E não sou (só) eu quem aponta os limites de um método científico excessivamente [cego🔙] causal e focado. Há críticas desde David Hume, passando por Karl PopperCarl Gustav JungEdgar Morin,, Thomas Kuhn e Ken Wilber

"- Yo, Mr. Freire, don't forget to say Heisenberg's  name, bitch!"

Piora muito quando este método reducionista se alia aos interesses da imprensa e do politicamente correto. Nem vou falar do ovo. Se uníssemos as pesquisas e patrulhamentos do "pode-não-pode" apenas do café teríamos algo como:
 
To be or not to be lethal, that is depression...
Café cura doenças. A não ser que seja amargo, pois outra pesquisa [sem noção] recente demonstra que quem toma café sem açúcar pode ser psicopata. Então adoce. Mas não use açúcar comum pois causa diabetes e obesidade. Além do que, a mistura melecada de café+açúcar é o principal irritador cotidiano de gastrites: derrame um pouco na mesa, cole o braço ali pouco depois, e imagine isso em seu estômago.
Portanto, café só cura tudo se você usar adoçante. Mas ciclamato com sacarina não pode: provoca câncer. Aspartame também não pode porque contém felaccio-senil-na-mina ou algo assim.
Sucralose, nunca: é um derivado da cana-de-açúcar, então você está empoderando usineiros e financiando o desmatamento da mata-atlântica para a monocultura. Talvez você pudesse usar açúcar mascavo ou rapadura, mas a rapadura de hoje é industrial e tem produtos químicos cancerígenos, feita por porcos capitalistas. Prefira os açúcares escuros orgânicos e artesanais, mas cuidado para não explorar trabalhadores rurais e pequenos produtores, senão o capitalista consumista porco será você. 
Nada mais cool que o hipster. E vice-versa.
nada mais cool que o hipster 
Até porque comer rapadura moída todo dia fará você engordar feito um porco, mesmo que em vilamadalês ela se chame de "açúcar mascavo-cabeça sem glúten".
Sobrou a stevia, que ciclistas hipsters adoram [embora usem açúcar refinado escondido]. Mas stevia sufoca as "notas" do "terroir" do café. Sim, pois agora há a versão cafeinada ou cervejeira do enólogo-mala. Ser chato era caro, até descobrirem que cerveja e café são mais baratos do que um bom ano do Petrus. Como os "especialistas" recomendam café com açúcar, certamente são psicopatas.  

Já que não posso adoçar, nem tomar amargo, nem deixar de tomar porque cura, nem tomar porque faz mal, nem usar adoçante, nem açúcar... Enfio logo uma meia dose de Bailey's Irish Cream na minha xícara de Nespresso. 

"- Opa, você disse Nespresso?", já me fuzila com ar de reprovação meu amigo enólogourmet-de-café. "Não entro em lugar algum que sirva essa m*rda capitalista suíça de café pasteurizado: você deveria tomar o orgânico sem glúten da Isabella Raposeiras, que lembra o terroir mogiana da fazenda Pessegueiro. Mas não tome em prensa francesa, pois seria um descaso com as vítimas de Mariana."

É por isso que eu sou a favor do desarmamento. Não é bom a gente andar armado quando escuta uma coisa dessas... 

Tomo meu café "adoçado" com Bailey's mesmo, lendo a nova pesquisa sobre ovo e café. Reflito que, passada um pouco nossa adolescência positivista e iluminista, talvez seja hora de questionarmos os limites do atual paradigma científico, ampliando a integração do sistêmico, transdisciplinar, dedutivo ou acausal. Macros são feito de micros, e os transcendem: como afirmar algo definitivo sobre o amor do poeta a partir apenas da análise dos átomos de tinta deixados no papel?

Apesar de todos os filósofos da ciência que citei, em 300 anos de questionamento, a academia prefere permanecer em Chico Toucinho. Quero crer que não seja por conveniência, ignorância ou ganância em maximizar produção e publicação reduzindo ao máximo o questionamento e refutação. Lembrando aos adeptos de Francis que o Bacon é outra coisa que mata.

Que bom que café faz bem. Ou mal. Tanto faz, já que devo morrer por causa do ovo que eu comi na semana passada para me salvar. Como coordenador de filosofia (e, por conseguinte, epistemologia) de um grupo transdisciplinar de pesquisas em uma escola de Medicina, talvez eu tenha olhos mais críticos e céticos em relação à relevância contextual de certas pesquisas, ao mesmo tempo em que sinto o quanto é difícil publicar trabalhos de anos quando ousam ser verdadeiramente inovadores e transdisciplinares. mas vejo certas divulgações com alguma suspeita metodológica de reducionismo, especialmente devido à delimitação de contexto e excesso de síntese que a maioria dos orientadores [preguiçosos] produtivos vêem como "qualidade". 

O que percebo ALÉM DO ÓBVIO é que, por um lado, é flagrante a culpa do sensacionalimo folhetinesco de algumas revistas e sites que adoram confundir a população com o "pode-não-pode" generalizado a partir de fragmentos de pesquisas isoladas. Mas por outro lado, isso também é causado por uma indústria acadêmica do "você é o quanto você produz".    

Produzir, delimitar e sintetizar demais é a moda - talvez a doença - da universidade atual. São tempos líquidos, consumistas e fast-food até na ciência - e no caso de "café" e "ovo", até em seus alvos de pesquisa. Mais fácil e seguro fazer mil teses seguras do que uma só com relevância paradigmática, contexto e sustentabilidade.
"Precisamos produzir... Delimite! Sintetize anos em 3 páginas... Gera menos rejeição, quem se importa com conteúdo? Cite mais e tenha menos ideias próprias... É preciso "ter mais foco" (ou seja, menos da visão sistêmica que nos protege de equívocos futuros). Seja menas", porque isso está transdisciplinar demais [para os limites seguros que sustentam as contas e o frágil ego acadêmico de seu orientador e castrador]...
Como bônus, essas pesquisas isoladas e descartáveis (enquanto contraditórias com o contexto do objeto pesquisado) ainda geram mais "fama". Pelo menos na Superinteressante, tablóides ingleses e redes sociais.

Quando ler a próxima pesquisa dessas, lembre-se: Água mata e pode causar câncer. É sério. A produção científica é que não anda lá tão séria assim.

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