quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Sobre crença e verdade íntima. Há umas três ou quatro semanas sonhei que fui convidado a ser goleiro do Cruzeiro. Bem, tenho certeza absoluta (opa!) que tive tal sonho. Como provar cientificamente que tive tal sonho? E se não, isso é crença?

Parece que você caiu no comum equívoco de confundir epistemologia com teoria do conhecimento, mais ampla, que engloba a primeira. O conhecimento dito "científico" é de fato um conhecimento possível e temporário, devido às certezas e incertezas da indução (pesquise por David Hume).

Há vários modos de se obter conhecimento. Se esse é consensual ou não, é outra história. Posso aprender por poesia por exemplo, e obter dali uma transmissão de informações emocionais do poeta, e até mesmo inteligência emocional ou filosofia (a filosofia nasce em um poema de Parmênides), e nem por isso é conhecimento epistemológico ou demonstração empírica de variáveis FÍSICAS, como requerido pelo método científico baconiano (excelente onde ele atua, e só). A religião também tem seus métodos. Experiência Íntima, conversas, recuperação de memórias... E já que citou, sonhos também, porque não? Inúmeros livros foram ditados em sonhos (Robert Louis Stevenson e Stephen King escrevem assim). Inúmeros inventos e composições nasceram de sonhos (a máquina de costura, a genial tabela periódica e a descoberta dos anéis aromáticos de benzeno são exemplos clássicos e famosos, mas há inúmeros em qualquer bom livro sobre histórico de sonhos). De algum modo, é CONHECIMENTO, mas certamente não é conhecimento científico. O sonho não fez um experimento mensurável com objetos empíricos repetidas vezes tentando provar uma teoria. Ainda assim, houve algum tipo de acesso à informação. Mas tampouco foi crença, também. A neurociência moderna talvez dissesse ser a função "intuição" (a séria, não a misticóide), uma inteligência de síntese, uma vez que todos os inventores e escritores que criavam com ajuda de sonhos tinham já antes longo esforço no sentido do que criavam, cabendo ao sonho apenas sintetizar coisas que o intelecto racional não teria condição de organizar sozinho.

Então, vamos ao seu caso. Como provar "cientificamente" que você TEVE o sonho? Sabendo então que é um sonho, a pergunta melhor seria PORQUÊ você precisaria "provar cientificamente" ATÉ MESMO que teve um simples sonho, que você mesmo reconhece como tal? Como psicanalista eu diria que isso parece uma tentativa exagerada de controlar racionalmente "todas as variáveis" até mesmo de um simples sonhos, do PRÓPRIO mecanismo intuitivo e onírico, e suspeitaria que talvez não tivesse obtendo o mesmo sucesso ao tentar "controlar" o mundo externo, voltando uma exigência paterna interiorizada de característica neurótico obsessiva agora contra si. Mas não lhe conheço para tanto. Mas se por acaso as pessoas acham mesmo você muito controlador, ou pouco, ou se tem algum traço obsessivo e/ou compulsivo, ou se é visto como racional demais, ou emocional/intuitivo de menos, eu sugeriria procurar ajuda antes que vire prejuizo.

Como filósofo, eu já pensaria fenomenologicamente nesse caso. Ora, você não sabe se viveu o dia de ontem, a não ser como fenômeno. (agora pesquise por Husserl). Sua memória nunca foi fato científico, nem ela mesma está dentro de você. Tudo está externo à sua consciência, INCLUSIVE suas memórias! Você acessa uma realidade que acha que toca, você acessa uma lembrança de quem você acha que ama, você acessa uma crença em algo que você acha que explica seu mundo, mas você mesmo, consciência, é COMPLETAMENTE VAZIO de conteúdo e significado!!! (é sério, pesquise Husserl, risos). Não somos NADA, não podemos ter certeza nem mesmo de que tudo seja ilusão, como querem alguns, e menos ainda da realidade. No fundo, você não prova cientificamente nem mesmo que comeu ontem tal coisa. No máximo você mostrará algumas fotos, apelará para algumas lembranças comuns de alguém. Assista "Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças", é uma boa metáfora hollywoodiana para as nossas limitações fenomenológicas.

Então, se você(s) entendeu(ram) um pouco do que falei, vamos vendo como vai ficando sem sentido "ter que" provar que se sonhou o próprio sonho. Provar PARA QUEM? POR QUÊ? O sonho é uma instância fenomenológica SUA também, e tanto é que às vezes, quando está nele, ele se torna imediatamente a sua realidade. Talvez esse momento agora aqui seja algo parecido. Como costumo brincar com pacientes e alunos, se estou aqui vivo bem aqui, se a parede me disser bom dia Lázaro eu respondo bom dia parede, e se amanhã eu me ver no inferno... abraço o capeta, oras! Acho esse ditado "está no inferno, abrace o capeta" de uma sabedoria fenomenológica exemplar.

Quanto à natureza do sonho, há várias teorias e funções, eu explico isso melhor em um artigo completo em minha página (http://www.voadores.com.br/lazaro). Nenhuma delas depende de uma "comprovação" e menos ainda "científica" e para o OUTRO de que VOCÊ tenha sonhado. É sua realidade interna, e é o seu inconsciente que está em análise. Porque essa necessidade psíquica de colocar O OUTRO nisso?

Bem, uma explicação freudiana poderia ser a de manifestação de um desejo. É uma dentre várias. Depende do que você é, do que almeja, do que Cruzeiro e Goleiro significam para você. Para um pode ser a possibilidade de um sonho, utópico ou não. Se fosse meu, entretanto, que não jogo mais bola, tenho 46 e estou acima do peso, certamente teria OUTRA interpretação, já que sou cruzeirense, assisti a quase todos jogos importantes de Raul no Mineirão, jogava sempre no gol com minha camisa amarela, e fui criado em subúrbios de Belo Horizonte, em uma época de cruzeiro invencível. Eu investigaria questões de minha infância. Isso porque eu era, de fato, goleiro. Se não fosse, eu já pensaria em porque eu teria me colocado, no meu próprio sonho, como o responsável pelo possível fracasso de meu time de coração, caso eu não cumpra as exigências alheias. E uma torcida inteira te olhado e cobrando pode ser a projeção de uns 50.000 pais observando atentamente seus sucessos e fracassos. Multiplique por mais 50.000 se seu pai também for cruzeirense. E nessas hipóteses últimas, voltamos à possibilidade de neurose obsessiva, uma vez que esta começa com uma exigência excessiva dos pais (reais ou sociais), de tal modo que o superego ao invés de apenas se voltar contra os desejos do id (o que geraria depressão) se rebela e transforma-se, ele mesmo, em uma espécie de militar que dá ordens para o EGO consciente, obrigando o neurótico a TER QUE fazer sucessivas atitudes repetitivas ou reorganizadoras de um grave conflito intersistêmico que se volta agora contra o mundo externo (fazer coisas compulsivamente, coleções, comida, masturbação, arrumar coisas neuroticamente, conferir 10x se algo está fechado, só pisar em pisos brancos de um quadriculado, etc, etc). Mas note que se você for atleticano, há outras leituras.

Talvez você queira dar a isso um ar de premonição, ou talvez de prospecção junguiana. A última é um tipo de premonição lógica, algo que parece adivinhação, mas na verdade é intuição do inconsciente em relação a possibilidades já semeadas, como um supercomputador que consegue antever diversas jogadas no xadrez (mas se você não as jogá-las, NADA acontecerá). É uma possibilidade, Se você for bom goleiro, E estiver fazendo testes, E merecendo, etc, etc. Senão, não. De todo modo, acho curioso o fato de, num sonho assim, você QUERER que haja uma comprovação "científica". Parece uma necessidade de converter, diante dos olhos alheios (olha o pai aí outra vez), algo que era "sonho" (ou desejo) em "realidade". E não uma realidade qualquer, mas aquela auferível a um observador crítico externo (sai daqui, papai).

Dá pra falar muito mais, mas creio que para uma pergunta tão difusa, já há mais aulas de filosofia e saber psicanalítico aí em cima do que me foi solicitado - ou o que o meu tempo, agora, me permite. Continuarei se houver repercurssões desta mensagem na Voadores ou no Facebook.

Apenas para concluir, o método científico sequer é um só, há o de Francis Bacon (derivado da filosofia), mas também os de falseabilidade (pesquise por Poper), as propostas de Jung para um método de investigação acausal (baseado em estatísticas e probabilidades, uma vez que há eventos onde não podemos reproduzir as causas) - e a recente física quântica (a séria, não a de filmes esquisotéricos), que demonstra que em outras escalas nem sempre os nossos princípios lógigos de identidade e outros são aplicáveis.

E SE POR ACASO VOCÊ FOR MESMO CONVIDADO A SER GOLEIRO DO CRUZEIRO, OLHA LÁ O QUE VAI FAZER, PORQUE SE TRATA DO MEU TIME DE CORAÇÃO, E VOCÊ VESTIRÁ O MANTO SAGRADO DE RAUL PLASSMANN, DIDA, GOMES E FÁBIO, OS MELHORES GOLEIROS DO BRASIL!!! :-D

Fala que eu te escuto... Pergunte-me qualquer coisa:

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